Velho Chico: do fim ao começo

Estou numa espécie de transe com uma história que já acabou, aliás, nunca existiu: foi uma ficção, uma novela, que só descobri quando a palavra FIM surgiu na tela da TV. Quando todos os personagens, os dos Anjos e os de Sá Ribeiro, encerraram o folhetim vivido em Grotas, às margens do grande rio, eu descobri o Velho Chico.

E agora estou aqui numa saga em busca da história de cada um, assistindo um capítulo do fim e voltando ao começo. Remendando as histórias, esticando um fio que liga um personagem da primeira fase com sua faceta madura. Descobrindo os protagonistas e os antagonistas, os matadores e os apaziguadores, os vilões e os mocinhos… Querendo pegar o fio da meada, corro a pesquisar por que um brigou com outro, quando foi que aquele tal trocou Grotas por Salvador, que diabos o fez voltar e por aí vai meu mergulho pelo Velho Chico.

Ao longo desse enredo inusitado que foi se desenhando, surgiu uma versão personalizada da novela. Na minha história de telespectadora remota, elegi o núcleo campeão: a família dos Anjos, de retirantes, que nos primórdios, foi carinhosamente acolhida pela família de Ernesto Rosa. No meu folhetim, eliminei a família dos de Sá Ribeiro e a figura lendária do coronel Saruê (Antonio Fagundes), que se revelou um personagem tão intragável que me fez desistir de acompanhar a novela em tempo real. E agora, tendo que correr atrás do tempo perdido, subtraí o combustível da história: não tendo Saruês, não haveria conflito, não haveria rivalidade e nem o amor proibido de Terê de Sá Ribeiro (Camila Pitanga) e Santo dos Anjos (Domingos Montagner). Importa-me lá!

O mundo podia parar e se resumir à fazenda Piatã, onde para mim estão os personagens e as histórias mais emblemáticas. Foi nesse núcleo que as cenas mais lindas se descortinaram,  a  partir da amizade de patrões com os retirantes, da fidelidade de Belmiro (Chico Diaz) a Ernesto Rosa( Rodrigo Lombardi) e da cumplicidade de dona Eulália (Fabiula Nascimento) e  Piedade (Cyra Coentro). Com a passagem do tempo, que para minha versão remendada nem faz tanto sentido, a fazenda se transformou no clã de Zezita Matos, a matriarca Piedade, que protege com unhas e dentes seus dois filhos, Santo e Bento (Irandir Barbosa), sua afilhada Luzia (Lucy Alves) e suas netas, Olívia e Isabel.

É fascinante ver, pelas lentes dessa família de sertanejos, como se constrói uma história de amor, amizade e justiça social. Como é lindo ver Santo e Bento falando do pai Belmiro ou rendendo todas as homenagens à mãinha. Em contrapartida, dona Piedade fecha com os filhos sem pestanejar. Na meu folhetim maluco, até o amor desmedido de Luzia por Santo é mais marcante do que o de Terê, a protagonista da novela.

A essa altura do campeonato, não me conformo com a trágica morte de Santo, não o personagem, mas do ator Domingos Montagner,  que foi um monstro na interpretação da história e, por ironia do destino, morreu afogado nas águas do Velho Chico, a novela que o consagrou…Ao mesmo tempo já nem sei mais a quem render minhas homenagens a tanta boniteza de novela, se a Santo dos Anjos, ao diretor Luís Fernando Carvalho, se ao autor Benedito Ruy Barbosa, e a seu neto, o colaborador Bruno Luperi, se à fotografia, se a atores como Irandir Barbosa, nunca te vi e já te considero pacas!  A princípio, eu era toda Santo dos Anjos, mas agora, meu coração cabe toda a família, e até uma agregada, a militante professora Beatriz, representada pela sempre competente Dira Paes.

Com seis meses de atraso, meus dias estão em suspenso e não quero outra coisa a não ser ouvir a sabedoria da família dos Anjos. Como não se emocionar com a lealdade entre os irmãos Santo e Bento? Como não se apaixonar pela nova geração da família tentando construir uma cooperativa sustentável? Como não se encantar com Santo explicando à filha Olívia que é preciso ouvir a terra?  Sábio ensinamento do Velho Belmiro dos Anjos: a terra conversa com a gente, basta fechar os olhos e ouvi-la…

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